sábado, 2 de novembro de 2013

TCC - Capítulo 4 – A 'Banalidade do Mal', é possível a inocência?


O sono da razão produz monstros.- Goya

Podemos iniciar a análise de “O Leitor” sob a luz da psicanálise para compreender como a vergonha pode levar o ser humano a tomar atitudes incompreensíveis aos olhos daqueles que não atribuem graus de importância diferentes à problemas diversos. No caso de Hanna, a vergonha de se expor analfabeta era maior que seu desejo de liberdade, talvez por ela já se sentir de alguma forma presa à sua condição, já que era uma apreciadora de literatura que não possuía autonomia de leitura.
É interessante observar como o analfabetismo rouba o discernimento de Hanna. Ao observar suas atitudes posteriores, quando ganha autonomia de leitura, a principal dúvida que fica é se ela faria tudo que fez se tivesse antes tido a oportunidade de ampliar sua criticidade, sua visão de mundo. De certa forma, esse é o ponto crucial desse trabalho: compreender como a leitura influencia as nossas decisões. Como ela modifica e induz conceitos morais que vão muitas vezes além dos muros da nossa convivência social, política, religiosa. Como a vivência de outros mundos, através da leitura, se incorpora àquilo que somos e fazemos?
Em determinado momento da narrativa, nos deparamos com um contexto bastante esclarecedor sobre como funcionava, naquele momento, a cabeça de Hanna. O pragmatismo de sua resposta quando o juiz pergunta porque as portas não foram abertas nos remete a crer que seus argumentos eram por si mesmos suficientes e aceitáveis: “éramos guardas, nossa tarefa era vigiar as prisioneiras. Não podíamos deixá-las escapar”. Concluindo em seguida: “se saíssem seria o caos. Como restabeleceríamos a ordem? Não podíamos deixá-las sair; éramos responsáveis por elas!”.
http://comunidadewesleyana.blogspot.com.br
Nesse instante, o leitor é capaz de perceber a sinceridade nas palavras de Hanna, consegue também verificar que ela, de fato, não compreendia a consequência dos seus atos. Parece que para ela, manter as prisioneiras sob controle era seu único dever, e ela o cumpriria, mesmo que isso resultasse na morte das prisioneiras.

Esse ponto da trama remete-nos ao livro “Eichmann em Jerusalém” (1999), no qual, a autora, Hannah Arendt (filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX), descreve a “banalização do mal” através de uma reflexão filosófica sobre o julgamento de Adolf Eichmann, um dos responsáveis pelos desenhos dos campos de concentração nazistas que, através de atos burocráticos comuns, identificou e enviou para extermínio milhares de judeus.

Em verdade, esses “cumpridores de ordens” sentem-se orgulhosos em cumprir seus deveres sem questioná-los. Eles se reconhecem medíocres e inferiores aos seus comandantes. Imaginam-se liderados por mentes mais brilhantes e capacitadas, por isso mesmo, sem a necessidade de serem questionadas.
Durante o julgamento que Arendt foi designada a cobrir como repórter, diante das respostas do réu, ela foi percebendo que ele era apenas um funcionário público comum e medíocre, que foi elevado à condição de monstro, por ser completamente incapaz de perceber e de raciocinar sobre seus atos. Eichmann cumpria o seu dever para com o governo nazista assim como Hanna Schimtz cumpria o dela. Assim como provavelmente muitos ao longo da história se tornam prisioneiros da própria ignorância e cometem atrocidades que provavelmente jamais cometeriam, se estivessem aptos a raciocinar sobre seus diversos comprometimentos éticos e morais.

A análise que Hannah Arendt faz de Eichmann foi considerada equivocada ingênua na época, repercutindo muito mal para ela enquanto profissional e judia. Ocorre que, seu olhar foi além de cumprir o que era esperado dela como escritora, filósofa e jornalista. Ao contrário de Schimtz e Eichmann, ela extrapolou suas funções, quando o mostrou também como vítima do sistema e da própria ignorância. Durante o julgamento, Eichmann não compreendia porque era acusado de exterminar judeus, quando sua responsabilidade resumia-se em cumprir as ordens que lhe eram impetradas, cabendo aos seus mandantes a decidir-lhe os motivos.

Hannah Arendt  - Wikimedia
Assim como Hanna, em nenhum momento, isentou-se de ter cumprido a função esperada no cargo que ocupavam, por entenderem existir uma clara distinção no grau de responsabilidade dos líderes e daquele que executam ordens, mas diferente de Schimtz, Eichmann não teve a oportunidade de pensar seus atos. Não teve como ela, tempo de deixar que a leitura de diversas obras literárias lhe redimisse do estado de simples executor para aquele que se pensa e se responsabiliza pelos atos que vão contra o bom senso. Hanna Schimtz com certeza se arrependeu de não ter aberto as portas daquela igreja, ela compreendeu, finalmente, o quanto fora cruel com aquelas mulheres que estavam sobre sua condução, então ela simbolicamente se enforca, valendo-se dos livros que dirimiram cegueira de sua ignorância, enquanto Adolf Eichmann, também condenado ao enforcamento, provavelmente morreu sem compreender porque o condenaram.

Conforme Rosa esclarece em seu livro9, mesmo durante a infância, quando a ingenuidade já é pressuposta, de alguma forma é possível para criança identificar qual a posição do “mocinho e do bandido” como no trecho a seguir:

Quando se brinca de “mocinho-bandido”, sabe-se que o fato de hoje se ocupar o lugar de mocinho não permite romper com a dignidade do “bandido”. Isso porque, amanhã, por certo, ocupar-se-á esse lugar. Então, há certo respeito pela dignidade do outro. Perdeu-se esse jogo. Agarrados ao cajado dos mocinhos, na luta por limpar a terra de todos os males – espelhados pelos bandidos -, busca-se extinguir, matar, excluir, tudo que possa representar o mal. O problema é que a violência nos habita. Ela nos é constitutiva. Sabe qualquer um que leu um pouco de antropologia ou leu os psicanalistas. Talvez seja pedir muito dos juristas que acreditam em mundos platônicos, na eterna rivalidade do bem contra o mal. Não significa, em absoluto, compactuar com atos ilegais. Significa entender que a figura crime não é ontologicamente ruim, mas decorrente de uma interação social. (ROSA, 2013)10


            Isso nós faz ponderar, outra vez, o quanto a alienação das consequências no cumprimento de ordens, pode justificar atos de atrocidades. Isso sugere que Hanna não desconhecia que aquelas mulheres presas na igreja em chamas morreriam, compreender porque ela não se sentiu diretamente responsável por isso é a parte mais complexa dessa análise.
Para compreender esses comparativos vamos observar partes do julgamento:

“A Hanna explicou que as guardas tinham combinado retirar o mesmo número de prisioneiras dos seis grupos pelos quais eram responsáveis, dez de cada vez, num total de sessenta; que os números podiam ser diferentes se um grupo tivesse poucas doentes e outro muitas, e que no final todas as guardas decidiam em conjunto quem deveria ser enviado de volta.
— Nenhuma se recusava a participar? Agiam todas de comum acordo?
— Sim.
— Não sabiam que estavam a mandar as prisioneiras para a morte?
— Claro, mas vinham novas, e as antigas tinham que dar lugar às novas.
— A senhora dizia então que se tratava de uma questão de arranjar lugar: tu, e tu, e tu, têm de ser mandadas de volta para morrerem?
A Hanna não compreendeu o que é que o juiz queria saber com aquela pergunta.
— Eu fiz... quero dizer... O que é que o senhor teria feito então?
A Hanna fez a pergunta a sério. Não sabia que outra coisa poderia ou deveria ter feito, e queria ouvir do juiz, que parecia saber tudo, o que ele teria feito no lugar dela.” (Leitor, O – Bernhard Schlink, p. 74, ASA Editores, S.A. 2007)

O momento epifânico do livro ocorre quando Michael finalmente desvenda o misterioso segredo de Hanna. Os motivos de abdicar de sua vida tantas vezes, recomeçando-a em outro lugar, sempre que por mérito profissional, recebia uma promoção, cujo o cargo lhe supunha alfabetizada. É quase com terror que Michael toma posse desse segredo. Ele sabia que conhecê-lo lhe traria um dilema moral capaz de mudar o rumo daquele julgamento e da própria vida de Hanna, mas como revelar algo tão grave, se ela, ali diante do tribunal se mostrava disposta a perder a libedade à decretar-se incapaz de ler e escrever?

“A Hanna não sabia ler nem escrever.
Por essa razão queria que lhe lessem em voz alta. Por essa razão, durante a nossa excursão de bicicleta, deixara-me encarregue de todas as tarefas que exigissem escrever e ler; e por isso, naquela manhã no hotel, ficara fora de si quando encontrara o meu bilhete, adivinhando que eu esperava que conhecesse o seu conteúdo, e temera ficar exposta. Por essa razão furtara-se à promoção na Companhia dos Eléctricos; a sua fraqueza, que podia ocultar facilmente como revisora, iria ser notória durante a formação para condutora. Por essa razão se escusara à promoção na Siemens e tinha-se tornado guarda de um campo de concentração. Por essa razão, para evitar o confronto com os peritos em grafologia, confessara ter escrito o relatório. Seria também por essa razão que ela falara de mais durante o processo? Por que não tinha podido ler o livro da filha, nem o texto da acusação e, portanto, ignorava as suas hipóteses de defesa e não pudera preparar-se convenientemente? Seria por essa razão que ela teria enviado as suas protegidas para Auschwitz? Para que elas se calassem se tivessem dado conta do seu ponto fraco? E seria por essa razão que escolhia as mais fracas?
Por essa razão? Eu podia compreender que se envergonhasse de não saber ler nem escrever, e que preferisse comportar-se comigo de uma maneira inexplicável em vez de se revelar. Afinal, eu sabia por experiência própria que a vergonha nos força a ter um comportamento esquivo, defensivo, a ocultar e a simular as coisas, inclusivamente a ferir os outros. Mas seria possível que a vergonha de não saber ler nem escrever explicasse também o comportamento da Hanna durante o julgamento e no campo de concentração? Que preferisse ser acusada de um crime a passar por analfabeta? Que cometesse um crime por ter medo de se mostrar analfabeta?
Quantas vezes, então, não me fiz e continuei fazendo essa mesma pergunta! Se o motivo da Hanna era o medo de ser desmascarada, por que razão é que em vez da exposição simples como analfabeta escolheu outro muito pior: como criminosa? Ou acreditava ela ser possível livrar-se daquilo sem ser desmascarada? Era simplesmente estúpida? E era tão fútil e má que se tornasse numa criminosa para evitar um desmascaramento?
Naquele tempo, e desde então, neguei-me a acreditar em tal coisa. Não, dizia eu para mim próprio, a Hanna não se decidiu pelo crime. Decidiu-se contra a promoção na Siemens e foi parar ao trabalho como guarda. E não, ela não enviava no transporte para Auschwitz as fracas e as débeis porque tinham lido para ela, mas havia-as escolhido para a leitura porque queria tornar-lhes mais suportável o último mês, antes de terem de voltar, impreterivelmente, para Auschwitz. E durante o julgamento não teve dúvidas na escolha entre passar por analfabeta ou por criminosa. Não fez cálculos nem traçou uma táctica. Simplesmente, aceitou que iam castigá-la; só não queria, ainda por cima, ser exposta. Não velava pelos seus interesses: lutava pela sua Verdade, pela sua Justiça. E, porque tinha sempre de simular um pouco, porque nunca podia ser muito franca, nunca totalmente ela própria, eram uma verdade lamentável e uma justiça lamentável, mas eram as suas, e a luta por elas era a sua luta.
Ela devia estar totalmente esgotada. Não lutava apenas no julgamento. Lutava sempre, e sempre tinha lutado, não para mostrar aos outros do que era capaz mas para esconder aquilo de que não era capaz. Uma vida cujos avanços consistiam em enérgicas retiradas e cujas vitórias eram ocultas derrotas. (Leitor, O – Bernhard Schlink, p. 88, ASA Editores, S.A. 2007)


Ao longo da narrativa é possível perceber que Michael e Hanna são escravos dos próprios segredos, tanto os individuais, como os compartilhados, o que os impele ao isolamento social. Atormentado, ele busca ajuda do professor Rohl (também sobrevivente judeu), para amenizar seu drama íntimo. Contudo, este apenas o faz ver que situações complexas como essas não podem ser vistas apenas como a luta do bem contra o mal, ou entre o certo e o errado, e que seria justamente compreender isso que daria sentido às observações do julgamento.

0 comentários:

Postar um comentário