O sono
da razão produz monstros.- Goya
Podemos iniciar a análise de “O Leitor” sob a
luz da psicanálise para compreender como a vergonha pode levar o ser humano a
tomar atitudes incompreensíveis aos olhos daqueles que não atribuem graus de
importância diferentes à problemas diversos. No caso de Hanna, a vergonha de se
expor analfabeta era maior que seu desejo de liberdade, talvez por ela já se
sentir de alguma forma presa à sua condição, já que era uma apreciadora de literatura
que não possuía autonomia de leitura.
É interessante observar como o analfabetismo
rouba o discernimento de Hanna. Ao observar suas atitudes posteriores, quando
ganha autonomia de leitura, a principal dúvida que fica é se ela faria tudo que
fez se tivesse antes tido a oportunidade de ampliar sua criticidade, sua visão
de mundo. De certa forma, esse é o ponto crucial desse trabalho: compreender
como a leitura influencia as nossas decisões. Como ela modifica e induz
conceitos morais que vão muitas vezes além dos muros da nossa convivência social,
política, religiosa. Como a vivência de outros mundos, através da leitura, se
incorpora àquilo que somos e fazemos?
Em determinado momento da narrativa, nos
deparamos com um contexto bastante esclarecedor sobre como funcionava, naquele
momento, a cabeça de Hanna. O pragmatismo de sua resposta quando o juiz
pergunta porque as portas não foram abertas nos remete a crer que seus
argumentos eram por si mesmos suficientes e aceitáveis: “éramos guardas, nossa
tarefa era vigiar as prisioneiras. Não podíamos deixá-las escapar”. Concluindo
em seguida: “se saíssem seria o caos. Como restabeleceríamos a ordem? Não
podíamos deixá-las sair; éramos responsáveis por elas!”.
![]() |
http://comunidadewesleyana.blogspot.com.br
|
Nesse instante, o leitor é capaz de perceber a
sinceridade nas palavras de Hanna, consegue também verificar que ela, de fato,
não compreendia a consequência dos seus atos. Parece que para ela, manter as
prisioneiras sob controle era seu único dever, e ela o cumpriria, mesmo que
isso resultasse na morte das prisioneiras.
Esse ponto da trama remete-nos ao livro
“Eichmann em Jerusalém” (1999), no qual, a autora, Hannah Arendt (filósofa
política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX), descreve
a “banalização do mal” através de uma reflexão filosófica sobre o julgamento de
Adolf Eichmann, um dos responsáveis pelos desenhos dos campos de concentração
nazistas que, através de atos burocráticos comuns, identificou e enviou para
extermínio milhares de judeus.
Em verdade, esses “cumpridores de ordens”
sentem-se orgulhosos em cumprir seus deveres sem questioná-los. Eles se
reconhecem medíocres e inferiores aos seus comandantes. Imaginam-se liderados
por mentes mais brilhantes e capacitadas, por isso mesmo, sem a necessidade de
serem questionadas.
Durante o julgamento que Arendt foi designada a cobrir como repórter,
diante das respostas do réu, ela foi percebendo que ele era apenas um
funcionário público comum e medíocre, que foi elevado à condição de monstro,
por ser completamente incapaz de perceber e de raciocinar sobre seus atos.
Eichmann cumpria o seu dever para com o governo nazista assim como Hanna
Schimtz cumpria o dela. Assim como provavelmente muitos ao longo da história se
tornam prisioneiros da própria ignorância e cometem atrocidades que
provavelmente jamais cometeriam, se estivessem aptos a raciocinar sobre seus
diversos comprometimentos éticos e morais.
A análise que Hannah Arendt faz de Eichmann
foi considerada equivocada ingênua na época, repercutindo muito mal para ela
enquanto profissional e judia. Ocorre que, seu olhar foi além de cumprir o que
era esperado dela como escritora, filósofa e jornalista. Ao contrário de
Schimtz e Eichmann, ela extrapolou suas funções, quando o mostrou também como
vítima do sistema e da própria ignorância. Durante o julgamento, Eichmann não
compreendia porque era acusado de exterminar judeus, quando sua
responsabilidade resumia-se em cumprir as ordens que lhe eram impetradas,
cabendo aos seus mandantes a decidir-lhe os motivos.
Assim
como Hanna, em nenhum momento, isentou-se de ter cumprido a função esperada no
cargo que ocupavam, por entenderem existir uma clara distinção no grau de
responsabilidade dos líderes e daquele que executam ordens, mas diferente de
Schimtz, Eichmann não teve a oportunidade de pensar seus atos. Não teve como
ela, tempo de deixar que a leitura de diversas obras literárias lhe redimisse
do estado de simples executor para aquele que se pensa e se responsabiliza
pelos atos que vão contra o bom senso. Hanna Schimtz com certeza se arrependeu
de não ter aberto as portas daquela igreja, ela compreendeu, finalmente, o
quanto fora cruel com aquelas mulheres que estavam sobre sua condução, então
ela simbolicamente se enforca, valendo-se
dos livros que dirimiram cegueira de sua ignorância, enquanto Adolf Eichmann,
também condenado ao enforcamento, provavelmente morreu sem compreender porque o
condenaram.
Conforme Rosa esclarece em seu livro9,
mesmo durante a infância, quando a ingenuidade já é pressuposta, de alguma
forma é possível para criança identificar qual a posição do “mocinho e do bandido”
como no trecho a seguir:
Quando se brinca de
“mocinho-bandido”, sabe-se que o fato de hoje se ocupar o lugar de mocinho não permite
romper com a dignidade do “bandido”. Isso porque, amanhã, por certo,
ocupar-se-á esse lugar. Então, há certo respeito pela dignidade do outro.
Perdeu-se esse jogo. Agarrados ao cajado dos mocinhos, na luta por limpar a
terra de todos os males – espelhados pelos bandidos -, busca-se extinguir,
matar, excluir, tudo que possa representar o mal. O problema é que a violência
nos habita. Ela nos é constitutiva. Sabe qualquer um que leu um pouco de
antropologia ou leu os psicanalistas. Talvez seja pedir muito dos juristas que
acreditam em mundos platônicos, na eterna rivalidade do bem contra o mal. Não
significa, em absoluto, compactuar com atos ilegais. Significa entender que a
figura crime não é ontologicamente ruim, mas decorrente de uma interação social.
(ROSA, 2013)10
Isso nós faz ponderar, outra
vez, o quanto a alienação das consequências no cumprimento de ordens, pode
justificar atos de atrocidades. Isso sugere que Hanna não desconhecia que
aquelas mulheres presas na igreja em chamas morreriam, compreender porque ela
não se sentiu diretamente responsável por isso é a parte mais complexa dessa
análise.
Para compreender esses comparativos vamos
observar partes do julgamento:
“A Hanna explicou que as guardas tinham combinado retirar o mesmo número de
prisioneiras dos seis grupos pelos quais eram responsáveis, dez de cada vez,
num total de sessenta; que os números podiam ser diferentes se um grupo tivesse
poucas doentes e outro muitas, e que no final todas as guardas decidiam em
conjunto quem deveria ser enviado de volta.
— Nenhuma se recusava a participar? Agiam todas de comum acordo?
— Sim.
— Não sabiam que estavam a mandar as prisioneiras para a morte?
— Claro, mas vinham novas, e as antigas tinham que dar lugar às novas.
— A senhora dizia então que se tratava de uma questão de arranjar lugar:
tu, e tu, e tu, têm de ser mandadas de volta para morrerem?
A Hanna não compreendeu o que é que o juiz queria saber com aquela
pergunta.
— Eu fiz... quero dizer... O que é que o senhor teria feito então?
A Hanna fez a pergunta a sério. Não sabia que outra coisa poderia ou
deveria ter feito, e queria ouvir do juiz, que parecia saber tudo, o que ele
teria feito no lugar dela.” (Leitor, O – Bernhard Schlink, p. 74, ASA Editores,
S.A. 2007)
O momento epifânico
do livro ocorre quando Michael finalmente desvenda o misterioso segredo de
Hanna. Os motivos de abdicar de sua vida tantas vezes, recomeçando-a em outro
lugar, sempre que por mérito profissional, recebia uma promoção, cujo o cargo
lhe supunha alfabetizada. É quase com terror que Michael toma posse desse
segredo. Ele sabia que conhecê-lo lhe traria um
dilema moral capaz de mudar o rumo daquele julgamento e da própria vida de
Hanna, mas como revelar algo tão grave, se ela, ali diante do tribunal se
mostrava disposta a perder a libedade à decretar-se incapaz de ler e escrever?
“A Hanna não sabia ler nem escrever.
Por essa razão queria que lhe lessem em voz alta. Por essa razão, durante a
nossa excursão de bicicleta, deixara-me encarregue de todas as tarefas que
exigissem escrever e ler; e por isso, naquela manhã no hotel, ficara fora de si
quando encontrara o meu bilhete, adivinhando que eu esperava que conhecesse o
seu conteúdo, e temera ficar exposta. Por essa razão furtara-se à promoção na
Companhia dos Eléctricos; a sua fraqueza, que podia ocultar facilmente como
revisora, iria ser notória durante a formação para condutora. Por essa razão se
escusara à promoção na Siemens e tinha-se tornado guarda de um campo de
concentração. Por essa razão, para evitar o confronto com os peritos em
grafologia, confessara ter escrito o relatório. Seria também por essa razão que
ela falara de mais durante o processo? Por que não tinha podido ler o livro da
filha, nem o texto da acusação e, portanto, ignorava as suas hipóteses de
defesa e não pudera preparar-se convenientemente? Seria por essa razão que ela
teria enviado as suas protegidas para Auschwitz? Para que elas se calassem se
tivessem dado conta do seu ponto fraco? E seria por essa razão que escolhia as
mais fracas?
Por essa razão? Eu podia compreender que se envergonhasse de não saber ler
nem escrever, e que preferisse comportar-se comigo de uma maneira inexplicável
em vez de se revelar. Afinal, eu sabia por experiência própria que a vergonha
nos força a ter um comportamento esquivo, defensivo, a ocultar e a simular as
coisas, inclusivamente a ferir os outros. Mas seria possível que a vergonha de
não saber ler nem escrever explicasse também o comportamento da Hanna durante o
julgamento e no campo de concentração? Que preferisse ser acusada de um crime a
passar por analfabeta? Que cometesse um crime por ter medo de se mostrar analfabeta?
Quantas vezes, então, não me fiz e continuei fazendo essa mesma pergunta!
Se o motivo da Hanna era o medo de ser desmascarada, por que razão é que em vez
da exposição simples como analfabeta escolheu outro muito pior: como criminosa?
Ou acreditava ela ser possível livrar-se daquilo sem ser desmascarada? Era
simplesmente estúpida? E era tão fútil e má que se tornasse numa criminosa para
evitar um desmascaramento?
Naquele tempo, e desde então, neguei-me a acreditar em tal coisa. Não,
dizia eu para mim próprio, a Hanna não se decidiu pelo crime. Decidiu-se contra
a promoção na Siemens e foi parar ao trabalho como guarda. E não, ela não
enviava no transporte para Auschwitz as fracas e as débeis porque tinham lido
para ela, mas havia-as escolhido para a leitura porque queria tornar-lhes mais
suportável o último mês, antes de terem de voltar, impreterivelmente, para
Auschwitz. E durante o julgamento não teve dúvidas na escolha entre passar por
analfabeta ou por criminosa. Não fez cálculos nem traçou uma táctica.
Simplesmente, aceitou que iam castigá-la; só não queria, ainda por cima, ser
exposta. Não velava pelos seus interesses: lutava pela sua Verdade, pela sua
Justiça. E, porque tinha sempre de simular um pouco, porque nunca podia ser
muito franca, nunca totalmente ela própria, eram uma verdade lamentável e uma
justiça lamentável, mas eram as suas, e a luta por elas era a sua luta.
Ela devia estar totalmente esgotada. Não lutava apenas no julgamento.
Lutava sempre, e sempre tinha lutado, não para mostrar aos outros do que era
capaz mas para esconder aquilo de que não era capaz. Uma vida cujos avanços
consistiam em enérgicas retiradas e cujas vitórias eram ocultas derrotas.
(Leitor, O – Bernhard Schlink, p. 88, ASA Editores, S.A. 2007)
Ao longo da narrativa é possível perceber que Michael
e Hanna são escravos dos próprios segredos, tanto os individuais, como os compartilhados,
o que os impele ao isolamento social. Atormentado, ele busca ajuda do professor
Rohl (também sobrevivente judeu), para amenizar seu drama íntimo. Contudo, este
apenas o faz ver que situações complexas como essas não podem ser vistas apenas
como a luta do bem contra o mal, ou entre o certo e o errado, e que seria
justamente compreender isso que daria sentido às observações do julgamento.
0 comentários:
Postar um comentário