POR QUE TER MEDO DO QUE É DIFERENTE?
"Misoneísmo" é o termo que designa o medo irracional expresso sob forma de preconceito e resistência ao que é novo. Tudo o que é novo é aquilo que nos é diferente. Podem reparar: aquelas coisas que nunca vimos antes, invariavelmente, à primeira vista, nos parecem estranhas e aterrorizantes, mesmo que no fundo nos causem um certo fascínio. Até certo ponto este sentimento misoneista é absolutamente natural: até este ponto em que ele se situa entre a curiosidade e o medo, a atração e a aversão. Quando este misoneísmo se mistura à moral e, pior, quando deles nasce um comportamento discriminatório e segregacionista, podendo chegar aos horrores sociais da xenofobia declarada, do nacionalismo, do racismo, do "apartheid", da escravidão ou do genocídio; do misoginismo, do sexismo ou da homofobia; da segregação religiosa, do fundamentalismo ou das assim chamadas "guerras santas", o que era natural, assume aspecto monstruoso e muda rapidamente de figura. Como ocorre este processo? Como identificar a tênue fronteira entre a discriminação e o misoneísmo? Como evitar a degeneração de um instinto natural humano?
Imagino que a única resposta a estas questões acima é a consciência. Quando se tem consciência deste processo, da existência do misoneísmo e de seus perigos potenciais, pode-se refletir sobre o próprio medo e, a partir de uma postura racional, combatê-lo de forma declarada, com coragem e compreensão de que o que nos é diferente não necessariamente é ruim. Este movimento de consciência racional reflexiva mostra-nos invariavelmente a diversidade humana e revela-nos, nesta diversidade, que o que é diferente é exatamente aquilo que vem enriquecer nossa visão, até então parcial, do existir humano. Afastados interesses políticos, sociais e econômicos de cunho escuso e tortuoso, este caminho é o único que se apresenta racional e propriamente humano, superando aos poucos um primeiro impulso instintivo, primitivo e animal, representado pelo misoneísmo.
A coisa já começa por um aparentemente inocente jogo de futebol, onde somos "nós" contra "eles". Deste confronto podem aparecer do fundo da alma humana, oriundos de tempos pré-históricos, sentimentos extremamente destrutivos que podem jogar um grupo contra o outro, até níveis absolutamente selvagens, como não raro se vê em espetáculos bárbaros de brigas entre torcidas ou mesmo antagonismos entre cidades, países ou povos inteiros, que, a priori, deveriam ser grupos irmãos unidos pelo esporte. A espécie humana é uma raça muitíssimo agressiva e acaba "aproveitando-se" de desculpas coletivas como estas para dar vazão à toda agressividade contida. É exatamente por esta razão que povos tradicionalmente mais contidos é que serão aqueles que mais belicosos se apresentarão em situação de "exceção", tais como os "Hulligans". A aparição destes sentimentos selvagens se dá normalmente de forma insidiosa e lentamente progressiva, solapando aos poucos as defesas psíquicas e distorcendo gradativamente o verniz civilizado. Isto é
eximiamente apresentado no filme "O Senhor das Moscas" ou na estória do "Médico e do Monstro". Este lado oculto e reprimido de nossa existência, é conhecido como "Sombra". Inevitavelmente a Sombra se aproveita de nossa tendência natural ao misoneísmo para manifestar-se: há que se cuidar para não ser por ela dominado.
Tudo fica muito pior quando existe um contexto social, histórico ou geopolítico que venha a corroborar racionalmente, ainda que de forma falaciosa, este sentimento primitivo e selvagem que emerge a partir do misoneísmo. Quando há séculos ou mesmo há milênios existe uma tendência generalizada de uma sociedade como um todo em apoiar a discriminação e quando para tal usam-se leis morais ou religiosas, a Sombra ganha plenos poderes para manifestar-se em seu lado mais doentio e feroz. A opressão contra a mulher, o racismo contra os negros, a crítica à homossexualidade e os confrontos religiosos são exemplos desta magnitude. As sociedades arbitrárias e neuróticas necessitam de um "bode expiatório" para justificar seus desacertos e desventuras. Eleitos tais "bodes expiatórios", dificilmente serão esquecidos e deixados de lado, pois, para que isto aconteça, haveria a necessidade da eleição de novos para seu lugar. Todo este mecanismo acontece em um nível inconsciente coletivo e é automaticamente transmitido de geração para geração através dos costumes e da educação. Mesmo pessoas que individualmente têm consciência destes processos, acabam por se flagrarem em atitudes preconceituosas "aqui e ali", quando impulsionadas pelo coletivo. Nestes casos, o medo de que a aceitação do que é diferente e novo venha a transformar o status quo e a colocar em risco a própria existência de todo o grupo parece absoluto e imperioso, sobrepujando a própria racionalidade e dela se utilizando para sustentar uma argumentação equivocada em nome do misoneísmo.
Um triste exemplo pode ser visto num texto publicado por um renomado professor universitário do Rio de Janeiro contra a homossexualidade: Prof. Dr. Olavo de Carvalho. Nele, este senhor demonstra claramente todo seu esforço em afastar de si seu pânico irracional frente às práticas homossexuais de diversos níveis. O único intuito de um texto assim, aliás bem articulado e elaborado, me parece ser a auto-afirmação de que sua própria sexualidade está longe de ser classificada como homossexual, apesar de deixar claro nas entrelinhas, que na infância e/ou adolescência deva ter havido algumas experiências sexuais entre ele e indivíduos do mesmo sexo. Práticas homossexuais são absolutamente comuns na infância e adolescência. O ataque aos homossexuais e à homossexualiade justificar-se-ia apenas por uma negação de sua própria homossexualidade, como extravasamento do medo e da culpa contidas nas lembranças destas práticas homossexuais do passado. O homossexual do presente seria uma espécie de "reencarnação" das culpas do sujeito cometidas num passado distante e, como tal, seria eleito o "bode expiatório" perfeito para uma auto-afirmação e para um processo catártico. Não há impedimento que, apesar de ter tido relações homo e/ou heterossexuais, uma pessoa se autoclassifique como heterossexual. O problema está em não permitir que outras pessoas se autoclassifiquem como bissexuais ou homossexuais.
Circe, a bruxa da Odisséia de Homero que transforma os homens em animais. |
Há quem se justifique dizendo que "a mera expressão de condenação moral não é discriminação; é exercício da liberdade de consciência". Como é possível que a moral seja expressão da liberdade??? A moral é fruto da separação entre a Luz e a Sombra, o Bem e o Mal, assumidos como tais de forma arbitrária e absolutamente variável de cultura para cultura, de época para época. Em essência: discriminatória. A moral é inevitavelmente dada e relativa, maniqueísta e ilógica, sempre a serviço de determinados interesses sociais, oligarquias e visões parciais do mundo. O mesmo já não acontece com a Ética que se pretende uma dedução lógica da maneira do agir, procurando o que poderia ser a idéia do Bem Universal. Mesmo a Ética ainda se apresenta por vezes contraditória e pouco concludente. O que não se diria da pura e simples moral... É verdade que um indivíduo, ainda que contra a Ética, tenha o direito de ser discriminatório e moralista, mas este direito per se não legitima sua posição ou a moral por ele adotada. Ler estudos de Marie-Louise von Franz sobre a Idéia Arquetípica do Mal. Igualmente Simone de Beauvoir, ainda que com argumentos totalmente diversos, concordaria com esta colocação (ler "A Moral da Ambigüidade"). Kant pode aplicar seus Imperativos Categóricos a todos os seres racionais, como por ele é definido, desde que exclua deste conjunto os Seres Humanos, muito mais complexos e compostos que puramente racionais e pensantes.
Também é possível que se diga que "o preconceito mesmo, por irracional e fanático que seja, não é discriminação, desde que não se expresse em atos agressivos ou danosos". Absolutamente de acordo. Infelizmente, na prática, o que ocorre é que o preconceito leva, na maioria das vezes, a tais atos agressivos ou danosos. Ou seja: um indivíduo somente teria o direito de permanecer preconceituoso, ainda que contra a Ética (repito), apenas se jamais agisse de acordo com tais preconceitos contra indivíduos que exercem atos contrários às suas idéias pré-concebidas ou ainda, sem que jamais agisse contra as ações por eles praticadas. O que equivale dizer que qualquer um tem o direito de ser misoneista, contanto que permita que todos se expressem livremente (inclusive em atos) e que a pluralidade humana seja uma possibilidade viável em qualquer local ou momento.
Quando estes preconceitos milenares estão a serviço da manutenção da hegemonia política e/ou de um determinado grupo, as proporções mais catastróficas deste processo se apresentam. Pois não era de extremo interesse das classes dominantes que os negros continuassem a ser considerados seres inferiores para que a mão de obra escrava pudesse continuar a ser utilizada nas Américas? O belíssimo filme de Steven Spielberg, "Amistad", demonstra isto claramente na narrativa dramática e realista de uma história real. Exatamente da mesma forma o regime de "apartheid" na África do Sul não era extremamente confortável para as elites que dele tiravam proveito econômico e político? O mesmo não ocorre com o sistema de castas na Índia? Não se poderia dizer que a segregação social, tão comum no Brasil, não está a serviço das elites que se beneficiam com a perpetuação da existência de uma massa inculta, sem consciência política e manipulável? Pois não é vantajoso para os chamados países do "Primeiro Mundo" a existência de países pobres que por eles são explorados? Pois não foi então o dinheiro e os bens usurpados da população judaica da Europa que financiou a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial? Todos estes sistemas segregacionistas de igual maneira se beneficiam de um pseudo-sentimento misoneista para um ganho secundário de enorme tamanho, mantido disfarçado por sob uma capa de simples preconceito étnico, religioso ou social. Nestes casos, são manobrados e manipulados tanto os preconceituosos quanto os discriminados.
Quando estes preconceitos milenares estão a serviço da manutenção da hegemonia política e/ou de um determinado grupo, as proporções mais catastróficas deste processo se apresentam. Pois não era de extremo interesse das classes dominantes que os negros continuassem a ser considerados seres inferiores para que a mão de obra escrava pudesse continuar a ser utilizada nas Américas? O belíssimo filme de Steven Spielberg, "Amistad", demonstra isto claramente na narrativa dramática e realista de uma história real. Exatamente da mesma forma o regime de "apartheid" na África do Sul não era extremamente confortável para as elites que dele tiravam proveito econômico e político? O mesmo não ocorre com o sistema de castas na Índia? Não se poderia dizer que a segregação social, tão comum no Brasil, não está a serviço das elites que se beneficiam com a perpetuação da existência de uma massa inculta, sem consciência política e manipulável? Pois não é vantajoso para os chamados países do "Primeiro Mundo" a existência de países pobres que por eles são explorados? Pois não foi então o dinheiro e os bens usurpados da população judaica da Europa que financiou a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial? Todos estes sistemas segregacionistas de igual maneira se beneficiam de um pseudo-sentimento misoneista para um ganho secundário de enorme tamanho, mantido disfarçado por sob uma capa de simples preconceito étnico, religioso ou social. Nestes casos, são manobrados e manipulados tanto os preconceituosos quanto os discriminados.
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