terça-feira, 25 de maio de 2010

Misoneísmo

POR QUE TER MEDO DO QUE É DIFERENTE?


"Misoneísmo" é o termo que designa o medo irracional expresso sob forma de preconceito e resistência ao que é novo. Tudo o que é novo é aquilo que nos é diferente. Podem reparar: aquelas coisas que nunca vimos antes, invariavelmente, à primeira vista, nos parecem estranhas e aterrorizantes, mesmo que no fundo nos causem um certo fascínio. Até certo ponto este sentimento misoneista é absolutamente natural: até este ponto em que ele se situa entre a curiosidade e o medo, a atração e a aversão. Quando este misoneísmo se mistura à moral e, pior, quando deles nasce um comportamento discriminatório e segregacionista, podendo chegar aos horrores sociais da xenofobia declarada, do nacionalismo, do racismo, do "apartheid", da escravidão ou do genocídio; do misoginismo, do sexismo ou da homofobia; da segregação religiosa, do fundamentalismo ou das assim chamadas "guerras santas", o que era natural, assume aspecto monstruoso e muda rapidamente de figura. Como ocorre este processo? Como identificar a tênue fronteira entre a discriminação e o misoneísmo? Como evitar a degeneração de um instinto natural humano?

Imagino que a única resposta a estas questões acima é a consciência. Quando se tem consciência deste processo, da existência do misoneísmo e de seus perigos potenciais, pode-se refletir sobre o próprio medo e, a partir de uma postura racional, combatê-lo de forma declarada, com coragem e compreensão de que o que nos é diferente não necessariamente é ruim. Este movimento de consciência racional reflexiva mostra-nos invariavelmente a diversidade humana e revela-nos, nesta diversidade, que o que é diferente é exatamente aquilo que vem enriquecer nossa visão, até então parcial, do existir humano. Afastados interesses políticos, sociais e econômicos de cunho escuso e tortuoso, este caminho é o único que se apresenta racional e propriamente humano, superando aos poucos um primeiro impulso instintivo, primitivo e animal, representado pelo misoneísmo.

A coisa já começa por um aparentemente inocente jogo de futebol, onde somos "nós" contra "eles". Deste confronto podem aparecer do fundo da alma humana, oriundos de tempos pré-históricos, sentimentos extremamente destrutivos que podem jogar um grupo contra o outro, até níveis absolutamente selvagens, como não raro se vê em espetáculos bárbaros de brigas entre torcidas ou mesmo antagonismos entre cidades, países ou povos inteiros, que, a priori, deveriam ser grupos irmãos unidos pelo esporte. A espécie humana é uma raça muitíssimo agressiva e acaba "aproveitando-se" de desculpas coletivas como estas para dar vazão à toda agressividade contida. É exatamente por esta razão que povos tradicionalmente mais contidos é que serão aqueles que mais belicosos se apresentarão em situação de "exceção", tais como os "Hulligans". A aparição destes sentimentos selvagens se dá normalmente de forma insidiosa e lentamente progressiva, solapando aos poucos as defesas psíquicas e distorcendo gradativamente o verniz civilizado. Isto é eximiamente apresentado no filme "O Senhor das Moscas" ou na estória do "Médico e do Monstro". Este lado oculto e reprimido de nossa existência, é conhecido como "Sombra". Inevitavelmente a Sombra se aproveita de nossa tendência natural ao misoneísmo para manifestar-se: há que se cuidar para não ser por ela dominado.

Tudo fica muito pior quando existe um contexto social, histórico ou geopolítico que venha a corroborar racionalmente, ainda que de forma falaciosa, este sentimento primitivo e selvagem que emerge a partir do misoneísmo. Quando há séculos ou mesmo há milênios existe uma tendência generalizada de uma sociedade como um todo em apoiar a discriminação e quando para tal usam-se leis morais ou religiosas, a Sombra ganha plenos poderes para manifestar-se em seu lado mais doentio e feroz. A opressão contra a mulher, o racismo contra os negros, a crítica à homossexualidade e os confrontos religiosos são exemplos desta magnitude. As sociedades arbitrárias e neuróticas necessitam de um "bode expiatório" para justificar seus desacertos e desventuras. Eleitos tais "bodes expiatórios", dificilmente serão esquecidos e deixados de lado, pois, para que isto aconteça, haveria a necessidade da eleição de novos para seu lugar. Todo este mecanismo acontece em um nível inconsciente coletivo e é automaticamente transmitido de geração para geração através dos costumes e da educação. Mesmo pessoas que individualmente têm consciência destes processos, acabam por se flagrarem em atitudes preconceituosas "aqui e ali", quando impulsionadas pelo coletivo. Nestes casos, o medo de que a aceitação do que é diferente e novo venha a transformar o status quo e a colocar em risco a própria existência de todo o grupo parece absoluto e imperioso, sobrepujando a própria racionalidade e dela se utilizando para sustentar uma argumentação equivocada em nome do misoneísmo.
Um triste exemplo pode ser visto num texto publicado por um renomado professor universitário do Rio de Janeiro contra a homossexualidade: Prof. Dr. Olavo de Carvalho. Nele, este senhor demonstra claramente todo seu esforço em afastar de si seu pânico irracional frente às práticas homossexuais de diversos níveis. O único intuito de um texto assim, aliás bem articulado e elaborado, me parece ser a auto-afirmação de que sua própria sexualidade está longe de ser classificada como homossexual, apesar de deixar claro nas entrelinhas, que na infância e/ou adolescência deva ter havido algumas experiências sexuais entre ele e indivíduos do mesmo sexo. Práticas homossexuais são absolutamente comuns na infância e adolescência. O ataque aos homossexuais e à homossexualiade justificar-se-ia apenas por uma negação de sua própria homossexualidade, como extravasamento do medo e da culpa contidas nas lembranças destas práticas homossexuais do passado. O homossexual do presente seria uma espécie de "reencarnação" das culpas do sujeito cometidas num passado distante e, como tal, seria eleito o "bode expiatório" perfeito para uma auto-afirmação e para um processo catártico. Não há impedimento que, apesar de ter tido relações homo e/ou heterossexuais, uma pessoa se autoclassifique como heterossexual. O problema está em não permitir que outras pessoas se autoclassifiquem como bissexuais ou homossexuais.

Não me parece que a pura existência de homossexuais assumidos ou da homossexualidade coloque em risco a da heterossexualidade ou a de heterossexuais, bem como a de qualquer outro tipo de sexualidade. Imagino que a aceitação do diferente, não o genitalmente diferente, mas o que é comportamentalmente diverso, demonstra tão-somente uma segurança plena em relação às próprias convicções do heterossexual. Deduz-se que a não aceitação do que lhe é diverso, demonstra claramente a insegurança pessoal que o homofóbico tem em relação à própria sexualiade, gerando, como o nome indica, um medo irracional e patológico àquele comportamento que colocaria neuroticamente em risco suas idéias pouco fundamentadas sobre seus titubeantes impulsos sexuais. O verdadeiro heterossexual jamais se sentiria ameaçado pela existência do homossexual ou do bissexual. Igualmente, a homossexualiade não coloca em risco a sobrevivência da espécie humana, como afirma o prof. Olavo de Carvalho em seu texto. Primeiro, por sempre haver existido ao longo de milênios em todas as culturas conhecidas. Segundo, por existir em uma proporção que sempre girou em torno dos 10% de qualquer população, o que está longe de impedir a reprodução humana, tão comum e freqüente. Pelo contrário: a Humanidade alastra-se como uma praga por sobre este planeta! Mesmo em épocas em que estes valores foram ligeiramente maiores, a espécie jamais foi ameaçada de extinção. A fantasia da ameaça à própria existência da espécie, fundamenta-se no medo da destruição dos valores tidos como indispensáveis à sobrevivência psíquica do homofóbico, projetado por continuidade em toda a humanidade. Em outras palavras: se um homofóbico aceita a homossexualiade no outro, deve, inexoravelmente aceitar a própria homossexualiade e vê nisso a ameaça à sua própria sobrevivência enquanto indivíduo, sem se dar conta que sua homofobia confirma sua homossexualiade latente.

Igual mecanismo ocorre na mente do machista inveterado: ao rejeitar a mulher, pensa reafirmar sua própria masculinidade, sem ao menos perceber que tamanha rejeição ao por ele chamado "sexo frágil" é fruto do medo devastador que sente de ser derrotado por uma liberdade do feminino em si mesmo e na sociedade. Este medo, absolutamente irracional, é fruto de épocas muito antigas, desde há mais de 10 mil anos, quando a sistema predominante na humanidade era o matriarcado. Nestas épocas, todo o poder político e social cabia à mulher e os homens eram sistematicamente usados somente para trabalhos braçais, tidos como menores, e para a guerra. Relegados a um plano de inferioridade social, os homens resolveram se rebelar. O matriarcado, origem e base das sociedades primitivas, somente foi derrotado com o uso da força bruta por parte dos homens e com a instituição de tabus, regras e leis, claramente discriminatórias contra a mulher. O patriarcado se apóia então sobre o medo para existir: o medo do homem em ser dominado (mais uma vez) pela mulher e o medo imposto de volta do homem contra a mulher, garantindo a primazia daquele sobre esta. A personificação deste medo pode ser facilmente notada em figuras mitológicas de diversas origens, tais como personagens no estilo de Medeia, Fedra, Circe, na figura da bruxa ou na encarnação máxima deste medo: Lilith. O primoroso livro de Roberto Cicuteri, "Lilith, A Lua Negra", explora muitíssimo bem este tema, em diversos campos projetivos. Igualmente o tema patriarcado versus matriarcado pode ser visto na coletânea de textos de Erich Neumann, "Pais & Mães" ou no livro de Sigmund Freud "Totem e Tabu". Esta imensa discriminação contra a mulher, somente começou a ser corrigida há menos de 50 anos com o aparecimento dos movimentos de "liberação feminina" e das primeiras feministas e, na prática de muitos países e culturas, ainda espera uma redenção eficaz. Quem não se choca com a agressividade contra a mulher infelizmente ainda tão comum em nosso meio e em culturas patriarcais extremistas?
Circe, a bruxa da Odisséia de Homero que transforma os homens em animais.
Há quem se justifique dizendo que "a mera expressão de condenação moral não é discriminação; é exercício da liberdade de consciência". Como é possível que a moral seja expressão da liberdade??? A moral é fruto da separação entre a Luz e a Sombra, o Bem e o Mal, assumidos como tais de forma arbitrária e absolutamente variável de cultura para cultura, de época para época. Em essência: discriminatória. A moral é inevitavelmente dada e relativa, maniqueísta e ilógica, sempre a serviço de determinados interesses sociais, oligarquias e visões parciais do mundo. O mesmo já não acontece com a Ética que se pretende uma dedução lógica da maneira do agir, procurando o que poderia ser a idéia do Bem Universal. Mesmo a Ética ainda se apresenta por vezes contraditória e pouco concludente. O que não se diria da pura e simples moral... É verdade que um indivíduo, ainda que contra a Ética, tenha o direito de ser discriminatório e moralista, mas este direito per se não legitima sua posição ou a moral por ele adotada. Ler estudos de Marie-Louise von Franz sobre a Idéia Arquetípica do Mal. Igualmente Simone de Beauvoir, ainda que com argumentos totalmente diversos, concordaria com esta colocação (ler "A Moral da Ambigüidade"). Kant pode aplicar seus Imperativos Categóricos a todos os seres racionais, como por ele é definido, desde que exclua deste conjunto os Seres Humanos, muito mais complexos e compostos que puramente racionais e pensantes.

Também é possível que se diga que "o preconceito mesmo, por irracional e fanático que seja, não é discriminação, desde que não se expresse em atos agressivos ou danosos". Absolutamente de acordo. Infelizmente, na prática, o que ocorre é que o preconceito leva, na maioria das vezes, a tais atos agressivos ou danosos. Ou seja: um indivíduo somente teria o direito de permanecer preconceituoso, ainda que contra a Ética (repito), apenas se jamais agisse de acordo com tais preconceitos contra indivíduos que exercem atos contrários às suas idéias pré-concebidas ou ainda, sem que jamais agisse contra as ações por eles praticadas. O que equivale dizer que qualquer um tem o direito de ser misoneista, contanto que permita que todos se expressem livremente (inclusive em atos) e que a pluralidade humana seja uma possibilidade viável em qualquer local ou momento.

Quando estes preconceitos milenares estão a serviço da manutenção da hegemonia política e/ou de um determinado grupo, as proporções mais catastróficas deste processo se apresentam. Pois não era de extremo interesse das classes dominantes que os negros continuassem a ser considerados seres inferiores para que a mão de obra escrava pudesse continuar a ser utilizada nas Américas? O belíssimo filme de Steven Spielberg, "Amistad", demonstra isto claramente na narrativa dramática e realista de uma história real. Exatamente da mesma forma o regime de "apartheid" na África do Sul não era extremamente confortável para as elites que dele tiravam proveito econômico e político? O mesmo não ocorre com o sistema de castas na Índia? Não se poderia dizer que a segregação social, tão comum no Brasil, não está a serviço das elites que se beneficiam com a perpetuação da existência de uma massa inculta, sem consciência política e manipulável? Pois não é vantajoso para os chamados países do "Primeiro Mundo" a existência de países pobres que por eles são explorados? Pois não foi então o dinheiro e os bens usurpados da população judaica da Europa que financiou a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial? Todos estes sistemas segregacionistas de igual maneira se beneficiam de um pseudo-sentimento misoneista para um ganho secundário de enorme tamanho, mantido disfarçado por sob uma capa de simples preconceito étnico, religioso ou social. Nestes casos, são manobrados e manipulados tanto os preconceituosos quanto os discriminados.
Mesmo nos casos em que aparentemente as partes do jogo estão claramente delimitadas, pode-se perceber uma manipulação dos fatos e da opinião pública em favor de determinadas elites. No recente acontecimento da tragédia do "World Trade Center" em Nova Iorque, apesar do inegável horror dos acontecimentos por todos testemunhados, poucos foram aqueles que se questionaram sobre a legitimidade da resposta arbitrária e extremamente agressiva dos Estados Unidos contra uma população pobre e já tão sofrida com inúmeras guerras anteriores. O que o infeliz povo do Afeganistão tem a ver com os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001? Qual o direito que o país mais rico do mundo tem de interferir drasticamente na cultura de um outro povo que contra ele jamais fez um ato de guerra? Será possível que ninguém tenha noção de que com o valor de um único míssil jogado sobre uma população civil indefesa seria possível que se alimentasse todo o povo afegão por um mês inteiro? Qual a relação existente entre os árabes e muçulmanos de todo o planeta (inclusive do Brasil) com os atos de uma pequena minoria fundamentalista e fanática? Por que todo um povo deve ser segregado como "bode expiatório" de uma "meia-dúzia" de terroristas absolutamente insanos? Ou será que ninguém notou a arbitrariedade com que os árabes e muçulmanos em geral da região da fronteira do Brasil, Paraguai e Argentina foram tratados por agentes americanos que inclusive passaram por cima da autoridade e das leis destes três países? Pensar sobre isso é vital neste momento.
Em Grego existem três formas distintas para se dizer "amor". A primeira, normalmente traduzida por "amizade" é a palavra "philia". "Philia" é o sentimento que expressa a união de "nós" (amigos) contra "eles" (inimigos). A "philia" está na base do misoneísmo. A segunda é a palavra "eros", traduzida como "amor complementaridade". Eros expressa a idéia de que no diferente reside a complementação em busca da totalidade e da harmonia, fruto da pluralidade. No entanto, na Bíblia toda vez que se lê a palavra "amor" na tradução em Português, não é a nenhuma destas palavras que se refere no original grego. É à terceira palavra a que faz referência: "agápe". "Agápe" é o "amor incondicional". Amor que une todos os seres sob o céu. Amor que ama a tudo indistintamente e que reúne em si o Universo, sem se importar com diferenças ou semelhanças. É exatamente a este "agápe" ("cáritas", em latim) que Cristo se refere em sua frase: "amai-vos uns aos outros". Há possibilidade mais abrangente ou sentimento mais nobre que este? Por que não amar o que é diferente?











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