segunda-feira, 31 de maio de 2010

Chegando Mais Perto das Regras Ortográficas


"Conta-se que um menino pobre, criado num contexto pobre, foi para a escola e com freqüência dizia 'cabeu' no correr de suas conversas. A professora preocupada o corrigia dizendo: 'não é cabeu, é coube!' O menino repetia 'coube', mas logo em seguida se distraía e vinha novamente com 'cabeu'. Após certo número de tentativas infrutíferas para corrigir o aluno, a professora o chamou, entregou uma folha de papel e disse: 'Agora vamos ver se você aprende de uma vez por todas. Enquanto os outros vão para o recreio, você fica em sala e escreve cem vezes coube nesta folha'. O aluno muito contrariado, começou a escrever. Após certo tempo, havia preenchido a página toda com coube, coube, coube... Entregou para a professora e essa, desconfiada, contou quantas vezes o aluno havia escrito. Foram apenas 98. Reclamou, então: 'Eu não mandei você escrever 100 vezes? Você está querendo me enganar? Aqui só tem 98.' O aluno, na maior simplicidade se justificou; 'É que não cabeu na folha, professora'." (MORETTO, 2001, p. 69)

  


      Pequenos truques, grandes prejuízos

    Muitos professores para ensinar ortografia na escola utilizam como estratégia pedagógica a descrição e a classificação de palavras isoladas. Dessa maneira, toda a ação é concentrada no reconhecimento de dígrafos, encontros vocálicos e consonantais em exercícios que primam pelo treinamento e cópia de palavras. Quando essas atividades são dadas, o professor acredita estar ensinando ortografia, mas seu efeito não vem sendo nada satisfatório. A grande maioria dos alunos apenas memoriza as instruções, formulando algumas noções ortográficas de forma passiva e mecânica, sem, no entanto compreender, de fato, o sentido das atividades propostas.

    Promover o estudo da ortografia é muito mais do que ensinar um conjunto de regras que visam à descrição da língua de acordo com a norma-padrão. As tarefas voltadas para a compreensão da ortografia devem ser, antes de tudo, atividades de reflexão sobre a língua em suas duas modalidades: escrita e falada. É no estudo sobre as relações entre o "como se fala" e o "como se escreve" que o aluno percebe as diferenças entre os dois códigos, compreende as convenções do registro escrito. Como você viu na aula anterior, a escrita nunca será espelho da fala. Cabe à escola explicitar e discutir tais diferenças. Qualquer tentativa de ensino, baseada na memorização de um conjunto de regras, sem uma reflexão mais ampla acerca do funcionamento da linguagem verbal resultará em empobrecimento do ensino ortográfico.

    Um dos equívocos cometidos pela escola é tratar o registro lingüístico que o aluno traz de casa como um empecilho ao ensino da ortografia. Forçar o aluno a falar como escreve não o ajudará a compreender o funcionamento da escrita. Muitos erros de ortografia são decorrentes das concepções tradicionais de alfabetização que lidam com o processo de transcrição dos sons da fala como se a língua fosse uma entidade homogênea ditada pelos rigores da Gramática.

    De acordo com Zorzi (2003), as omissões gráficas não são aleatórias. Cabe ao professor observar a lógica estabelecida para o aluno grafar as palavras. É muito importante que o professor reflita sobre os princípios que direcionam a sua prática pedagógica.

"...Quando a proposta metodológica enfatiza, por tempo prolongado, somente palavras escritas com sílabas formadas regularmente por consoantes e vogais, isto significa estar adiando a apresentação de outras possibilidades de construção silábica, ou seja, a criança não está sendo devidamente introduzida à realidade da escrita. Assim sendo, ela poderá tomar a combinação CV como padrão regular da escrita e, quando tiver que escrever palavras que não correspondem aos modelos aos quais está mais familiarizada, a possibilidade de erros irá aumentar, podendo se manifestar como omissão de letras." (p. 56)

   
Acréscimo de letras e hipercorreção


    Chamamos atenção para alguns casos de omissão de letras que podem estar relacionados à falta de sincronia entre o ato de pensar uma palavra e grafá-la no momento seguinte. O alfabetizando, por ter pouca experiência no campo da escrita, ainda não desenvolveu procedimentos de controle sobre a sua produção gráfica. Por isso, a importância de se estimular o hábito do aluno revisar os textos no ato de sua produção. O auxílio do professor na atividade de revisão é imprescindível, visto que o aluno se sentirá mais seguro e manterá uma postura reflexiva diante das solicitações proposta pelo professor.
 
    

      Borboleta – borbolheta
        Trabalhar – trabralhar
        Bandeja – bandeija
        Beneficente – benefeciente
        A – há
         Espelho – espelhio
           Armadilha – armaidilha
           Queria – querinha
           Igual - ingual
 
 
    O processo de aprendizagem do código escrito, de acordo com as convenções ortográficas, envolve atividades de regulação do uso das letras por parte de quem está aprendendo a escrever. Podemos dizer que o aluno quando começa a adquirir certa consciência dos ditames gramaticais, procura desenvolver alguns mecanismos para se aproximar da grafia correta. Tal procedimento tem a ver com a influência que a escola exerce sobre o aluno no ato de corrigir e lidar com os erros no espaço escolar. Na tentativa de se autocorrigir, o aluno acaba por estabelecer algumas analogias que não condizem com registro padrão. Por exemplo, o aluno acrescenta letras onde não devia, estabelecendo uma relação equivocada na hora de grafar uma determinada palavra. Dizemos que o sujeito generalizou um fato transferindo um determinado conhecimento indevidamente. É o caso da criança que sabe escrever "queridinha". Por acreditar que a palavra "queria" também deve ser composta de "nh" formula a frase "Eu não querinha está neste lugar". É comum, também, as crianças grafarem vocábulos dobrando a letra "r" ou a letra "s" por ainda não terem clareza do contexto em que elas devem ser usadas. Sendo assim, escrevem "ouvirrão", "ararra", " rroda", "paissagem". Nesse caso, a criança ainda não aprendeu que a representação dos sons vinculados às letras "r" e "s" é determinada pela posição da letra no contexto da palavra.
    
    A grande maioria dos casos de acréscimo indevido de letras tem forte vinculação com o mecanismo de hipercorreção. Tal fenômeno ocorre quando o indivíduo tem certa consciência dos condicionamentos ortográficos, mas ainda não sabe usá-los adequadamente. Sendo assim, a transgressão de uma norma é decorrente de uma generalização indevida no plano da fala e/ou no plano da escrita. No plano da escrita, exemplificamos um caso de hipercorreção narrando a situação do sujeito que viu escrito em algum lugar as formas gráficas "há" e "espécie". Sendo assim escreve um bilhete para a sua namorada: "Vou há festa na casa de Rodrigo, por favor, não me esperie".

    No plano da oralidade, é só lembrarmos de um personagem interpretado por José Wilker (o bicheiro Giovani Brota da novela Senhora do Destino), que, ao tentar se expressar de acordo com os rigores da gramática, acabava por construir formas lingüísticas estranhas decorrentes de um excesso de correção.
Verbete.

Chamamos hipercorreção ou ultracorreção o fenômeno que decorre de uma hipótese errada que o falante realiza num esforço para ajustar-se à norma padrão. Ao tentar ajustar-se à norma, acaba por cometer um erro. Por exemplo: pronunciar 'previlégio' imaginando que privilégio é errado; pronunciar "bandeija" achando que bandeja é errado. Pronunciar "telha de aranha" achando que teia de aranha é errado. (BORTONI, 2003, p. 28)


    Muitos casos de hipercorreção (associado ao acréscimo de letras) são decorrentes de uma correção exagerada por parte do professor. Quando o professor censura o aluno dizendo "Não se fala tesora, se fala tesouura" sem discutir a questão, ele abre brecha para uma assimilação mecânica. O aluno memoriza as afirmações e transfere esSe saber superficial para outras situações, escrevendo "professoura", "espeira", "carinhio". Toda didática fundamentada na artificialização da pronúncia para enfatizar o uso e o som de determinadas letras, acaba por causar danos à aprendizagem da escrita, podendo criar vícios de soletração. Sem falar nas generalizações equivocadas que podem acompanhar o aluno por toda sua vida escolar.


José Ricardo Carvalho da Silva
4º período, campus Niterói
Professor da Faculdade Maria Thereza (Pedagogia)
Mestrando em Pedagogia




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